sábado, 27 de setembro de 2014

"Se as políticas que estamos executando não tiverem continuidade, a fome volta", diz ministra do Desenvolvimento Social Tereza Campello

Economista de formação, Tereza Campello é ministra de Desenvolvimento Social desde 2010

Por Yuri Silva

Uma semana após a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agrocultura (FAO) anunciar que o Brasil saiu pela primeira vez do Mapa da Fome, a ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, falou com exclusividade ao repórter Yuri Silva sobre causas e efeitos do aumento de renda e listou desafios do país na área social.


                     Qual foi a importância para o Estado brasileiro dessa mudança de patamar, na qual o país deixa de figurar no Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO)?

Para o país todo, não só para o Estado brasileiro, mas para o povo brasileiro, é um motivo de comemoração. A fome é um fenômeno que assola o país há séculos. A FAO faz esse acompanhamento dos indicadores dos países que tem fome há mais de 50 anos. E é a primeira vez que o Brasil sai do Mapa da Fome. Hoje a gente pode dizer, segundo os dados da FAO, que no Brasil tem 1,7% da população subalimentada. Ou seja, nem dá para dizer que a gente tem essa população com fome, porque subalimentação não é passar fome naquele sentido clássico. A pessoa está se alimentando – de peixe e farinha, por exemplo –, mas falta fruta, falta vitamina C, falta diversificar a alimentação. Nos últimos 10 anos, a gente reduziu em 82% o número de pessoas que estavam subalimentadas.

                     Segundo o relatório da FAO, o Brasil possui 1,7% da população em situação de insegurança alimentar. Em 1990 esse número atingiu 14,9%. O governo tem expectativa de redução ainda maior desse número para os próximos anos? Qual é essa expectativa?

Certamente. Tem uma coisa que eu acho importante dizer, em especial do Nordeste, em que a fome é um problema muito mais presente no campo e na cidade. Eu morei no Nordeste durante toda minha infância e posso falar também como filha de nordestino. Nós, o Brasil, sempre produziu comida suficiente para alimentar o povo brasileiro, ao contrário de alguns lugares do mundo, em que o solo é muito ruim, o clima é muito ruim e não tem tecnologia. O Brasil sempre foi um dos maiores produtores de alimentos do mundo. Sempre teve um solo excepcional, sempre teve terra aráveis suficientes para produzir alimentação para todo o seu povo, sempre teve um clima excepcional e sempre teve tecnologia de ponta, das melhores tecnologias do mundo em agricultura, como é aquilo que produzimos na Embrapa. Mesmo com tudo isso, o povo passava fome. Ou seja, não era um problema de quantidade de alimentos produzidos. O problema era de acesso do povo pobre aos alimentos. A grande conquista do Brasil é ter garantido que a população tivesse acesso aos alimentos. Ter acesso aos alimentos significa ter renda para poder comprar essa comida que estava disponível. A própria FAO, no seu relatório mundial, coloca o Brasil não só fora do Mapa da Fome, mas como destaque. Eles fizeram um capítulo específico para falar como o Brasil alcançou essa vitória, usando o exemplo para que outros países pudessem obter esse mesmo resultado.


                     Há alguma projeção de quando será possível zerar esse número?

Hoje, nós temos população em situação de subalimentação em comunidades muito isoladas. Três delas, em especial, são as comunidades indígenas, quilombolas e a população de rua. Não existe mais aquela situação de população do campo, agricultores familiares, passando fome. Mesmo o Nordeste tendo passando por esse período terrível de seca agora, o povo não passou fome, porque tinha Bolsa Família e Bolsa Estiagem. Agora, nós estamos indo atrás dessas comunidades, com políticas específicas. No caso dos quilombolas, por exemplo, essas comunidades estão em territórios isolados, onde foram para fugir da escravidão. Nesses locais, mesmo existindo renda, eles não conseguem comprar comida necessária para ter essa alimentação diversificada. Nós contratamos assistência técnica voltada para essas comunidades, para que eles não percam sua cultura, seus hábitos alimentares, mas passem a ter acesso a essas tecnologias. São sementes melhoradas geneticamente, técnicas para plantar e ter maior produção, técnicas para melhorar o solo. Várias dessas ações estão em andamento. Nós pretendemos continuar reduzindo esse número. Acho que nenhum país pode ficar satisfeito, mesmo com percentuais tão baixos, tendo ainda uma parcela da sua população passando fome.

                     São vários os indicadores que levam à conclusão da FAO no relatório. Quais foram os principais?

No relatório, a FAO cita o aumento do salário mínimo, a geração de empregos formais (com carteira assinada) e programas como Bolsa Família, que levaram renda para a população, que agora pode comprar alimentos. Tem uma quarta questão importante citada, que é a merenda escolar. Nós temos 43 milhões de crianças e jovens no Brasil que são alimentadas na escola. Isso melhora muito a situação de desnutrição da criança e faz com, na família, haja uma pessoa a menos comendo em casa. Ou seja, sobra um pouco mais de comida para outra refeição – à noite, por exemplo. Na Bahia, são 2,4 milhões de crianças que têm refeição na escola todos os dias. O primeiro dos indicadores é termos melhorado a quantidade de calorias por dia disponível para a população. Aumentou muito a alimentação disponível, em 10%, porque passamos a incentivar muito a agricultura familiar, aquela que mais produz alimento para o povo. Em segundo, aumentou a renda. O salário mínimo cresceu 71%, criamos 22 milhões de empregos formais e ampliamos o Bolsa família.

                     O governo atribui muito desses resultados positivos aos programas sociais de transferência de renda, como o Bolsa Família. Qual a avaliação que se tem dentro do governo no que se refere ao horizonte desses programas? Eles devem durar quanto tempo até que não sejam mais necessários?

A FAO cita cinco outras questões além do Bolsa Família. O salário mínimo, para mim, é a maior e mais importante das medidas para aumentar a renda da população. Se eu fosse citar uma só, eu citaria o salário mínimo. Mas tivemos um conjunto de outras medidas, que garantiram que aumentássemos o padrão alimentar. É o caso da distribuição de Vitamina A para nossas crianças. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a distribuição da Vitamina A tem um impacto gigantesco na redução da mortalidade infantil. A fome é um fenômeno complexo e não é combatida com uma única política. A primeira grande questão é essa, para a gente não ficar aumentando mais ainda o preconceito contra os pobres. A população pobre no Brasil trabalha. Um das nossas grandes lutas não foi acabar com a pobreza, mas acabar com o preconceito contra a pobreza, que é muito grande. Não podemos ficar repetindo essas coisas que se diz no sudeste, de que a população nordestina é pobre porque não trabalha. Mesmo quem recebe o Bolsa Família trabalha, trabalha muito. Metade da população do Bolsa Família não trabalha, porque são crianças. Essa também é uma virtude do Brasil, ter tirado as crianças do trabalho infantil. Junto com a fome, o trabalho infantil era uma chaga, principalmente na Bahia. Era o estado que tinha mais trabalho infantil no Brasil. A redução desse tipo de trabalho é um orgulho. O Bolsa Família complementa a renda das pessoas. Precisamos combater esse preconceito. No mundo todo, existem programas de transferência de renda. Nos Estados Unidos, na Holanda, na Finlândia, na França. Em todos os países desenvolvidos do mundo, países ricos, existem esses programas, no sentido de melhorar a renda de famílias por situações diversas. Essa ideia de que a pessoa vai começar a trabalhar e não vai precisar mais do Bolsa Família é uma ideia preconceituosa. Há países desenvolvidos que hoje têm metade da população desempregada. Se pegar a Espanha, que passou por uma crise violentíssima e tem metade dos seus jovens em situação de desemprego, não tem nada a ver com preguiça, com desalento, nem com nada desse preconceito. Certamente se o Estado [espanhol] tivesse a mesma preocupação que o Brasil está tendo, teria menos sofrimento para essa população. Nós não achamos que nossa meta é acabar com o Bolsa Família. Nós queremos é melhorar o Brasil, melhorar o poder dessas pessoas. E uma das coisas que estamos fazendo, em conjunto com o governo da Bahia, é o Pronatec. Nós estamos levando qualificação profissional para o povo. A Bahia é um dos campeões em cursos de qualificação para a população de baixa renda. O povo que trabalha, de sol a sol, e vai de noite vai para a escola, porque quer melhorar de vida. Nós não temos que estar preocupados em acabar com o Bolsa Família, mas em acabar com a pobreza, com o sofrimento do povo. Antes, tinha muita gente preocupada em acabar com o Bolsa Família. Agora, parece até que tem menos. Agora todo mundo fala bem do Bolsa Família. Que bom!





                     Atualmente, qual o tempo médio que o beneficiário do Bolsa Família leva para não necessitar mais da ajuda do Estado?

Esse número não temos, porque é muito variado. Não tem como ter um tempo médio em 10 anos. O Bolsa Família faz 11 anos no próximo mês. Tem gente que está desde o começo, mas é muito pouca gente, e teve gente que entrou e saiu. Mas tem um estudo hoje, que está sendo usado no mundo todo, que mostra que o risco de desnutrição diminui quanto mais tempo a família fica no Bolsa Família. Na maior parte dos programas do mundo, como no México, as famílias ficavam dois anos no programa e depois era desligada. Foi um fracasso total. O modelo do Brasil foi um sucesso. Nós queremos o que para nossa juventude? É essa a pergunta que o Brasil precisa fazer hoje. Eu estava lendo o conto famoso do Monteiro Lobato, do Jeca Tatu, que ficava o dia todo parado, sem fazer nada. As pessoas chamavam ele de preguiçoso e pinguço. Até descobrirem que ele tinha amarelão, uma verminose gravíssima, que fizesse com que ele e a família não conseguissem trabalhar. Precisamos olhar e ver se queremos tirar a pessoa do Bolsa Família, que é o programa mais barato que o governo tem. Hoje, no mundo todo, se diz que o Bolsa Família é o melhor investimento que o Brasil pode fazer, porque consome 0,5% do PIB (Produto Interno Bruto) e, a cada R$ 1 que investimos, retorna R$ 1,78 para a economia. Essa família gasta em comida, em coisas que são produtivas para o Brasil. Não é igual o povo que vai gastar em Miami. É riqueza para o nosso país. Gastar com o Bolsa Família não é ruim para o pobre nem é ruim para o rico.

                     Não é só o Bolsa Família o responsável pelos resultados. A FAO cinta a merenda escolar, a elevação da renda dos brasileiros, o aumento da oferta de alimentos. Como é que o governo tem trabalhado nesses setores para influenciar na questão alimentar?


Tem várias questões que já vêm avançando. O Ministério da Saúde, por exemplo, tem um pacto já feito com a indústria de alimentos no Brasil, para reduzir a quantidade de sódio e gordura nos alimentos. Hoje, o principal problema que o Brasil enfrenta do ponto de vista da segurança alimentar é a obesidade. Deixamos de ser um país de fome e passamos a ser um país que tende a ser um país de obesos. Nossa grande batalha agora, do ponto de vista de saúde pública, é essa. O governo federal estabeleceu cota para que o dinheiro da merenda escolar seja usado para comprar da agricultura familiar produtos frescos, como vegetais e frutas, para garantir uma alimentação saudável. Já estamos distribuindo Vitamina A e sulfato ferroso para as crianças. A partir da semana que vem, o ministro da Saúde [Arthur Chioro] anuncia uma nova ação envolvendo nutrientes nas escolas. Mas não posso furar o anúncio do nosso ministro. O grande desafio é esse novo patamar de mais qualidade – e não quantidade de comida.

                     Em que outros setores essa redução da fome tem influenciado diretamente?

A gente sabe que uma criança submetida à fome, tanto no ventre da mãe quanto até os cinco anos de idade, entra em uma situação irreversível. Um adulto, por exemplo, se ele come mal por um período de sua vida, ele sofre, ele emagrece. Mas ele não perde sua capacidade intelectual. Ao contrário de uma criança. Quando uma criança passa fome até os cinco anos de idade, isso é irreversível para o seu desenvolvimento futuro. Essa é uma questão mais estratégica. Estamos garantindo o futuro do Brasil. Esse futuro adulto, se ele não passou fome, se ele teve acesso a estímulos, se ele teve acesso à vacinação correta, ele vai ser um adulto não só muito mais produtivo, mas também melhor fisicamente. A grande vitória do Brasil é estar construindo adultos mais saudáveis.

                     Há estudos e análises quanto à mudança de estatura dos brasileiros durante esse processo de melhora da oferta de alimentos?

Observamos que nossas crianças estão mais altas. A fome faz com que crianças fiquem mais magras. De 2008 para 2012, as crianças cresceram 1 centímetro, em média. Crianças de cinco anos há um tempo mediam uma altura. Crianças de cinco anos hoje medem mais. Por que? Porque comeram, se alimentaram. A merenda escolar tem sido importante.


                     O Nordeste é o principal beneficiado quando o assunto é redução da fome. Como está o panorama aqui na região atualmente? Continua sendo a mais carente, ao lado do Norte? Como estão distribuídos esses focos de fome no mapa do país?

A fome hoje está restrita a grupos indígenas, quilombolas, população de rua. Não existe mais aquela população gigantesca em situação de subalimentação no Nordeste. Isso está muito mais equilibrado. Como a população indígena, quilombola e de rua é dispersa, essa desigualdade, com a fome se concentrando no Nordeste, está muito mais equilibrada hoje. Estamos fazendo uma busca ativa grande. São grupos pequenos, localizados, restritos, específicos e até mais difíceis de trabalhar. Não é com Bolsa Família que vamos melhorar, por exemplo, a situação dos indígenas.


                     Quais os próximos desafios do governo nesse processo histórico de redução da fome? O que a senhora destaca de mais desafiador e importante para o governo federal no próximo ano, caso a gestão atual prossiga?


Eu acho que o desafio está colocado para o Brasil. Se as políticas que a gente está executando não tiverem continuidade, a fome volta. A fome não é igual doença que foi dizimada. Se a população deixar de ter renda, se o país deixar de fortalecer a agricultura familiar, se o salário mínimo parar de crescer, se a gente reduzir os gastos em políticas sociais, a chance de voltarmos a ter fome é muito grande.

0 comentários:

Postar um comentário